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Salvador, a cidade que nós queremos

  • 10 de Fevereiro de 2007

Vi recentemente no Centro Cultural Banco do Brasil, do Rio de Janeiro, um dos mais belos quadros do grande pintor mineiro Guignard. Mostrava Ouro Preto com seu casario chão recoberto pela neblina matutina, enquanto as torres bulbosas de suas igrejas emergiam das brumas com uma força e uma luz impressionante. Era uma exposição sobre o Barroco Mineiro e aquele quadro, de poucas décadas atrás, retratava melhor a cidade barroca que todas as imagens sacras e monumentos centenários expostos. Em Roma são as cúpulas, como em Istambul os minaretes e em Nova York os arranha-céus que dão identidade à urbe.
A identidade de Salvador vem de seus dois andares e do perfil de sua Montanha humanizada. Não é sem razão que os pintores holandeses e os viajantes e fotógrafos do século XIX retrataram tanto Salvador vista da baia. E que como uma cidade barroca Salvador tinha uma organização espacial única. Até 1972, as construções de nossa urbe não podiam exceder a cota da cornija da Catedral. Naquela época ainda se podia ver as torres das igrejas flutuando sobre o mar de telhados e àticos, como as cúpulas em Roma. A partir da lei 2403/72, a altura dos edifícios passou a ser regulado por coeficientes de utilização que privilegia os interesses da indústria imobiliária. É como se pudesse construir na área histórica de Paris ou Roma, como se constrói em sua periferia, por uma suposta isonomia imobiliária. Desde então, a cidade começou a perder sua imagem e característica de dois andares. Vista de Mont Serrat já quase não se distingue as duas cidades.
Uma conseqüência de seus dois andares são os mira-mares e torres mirantes, como os dos conventos da Lapa, Desterro e Soledade, para contemplação da baia. Tais mira-mares estavam geralmente ligados ao átrio de uma igreja, no bordo da Montanha. Preservam-se ainda os de Santo Antonio da Barra, Vitória, Aflitos, Santa Teresa, Santo Antonio Alem do Carmo e Lapinha. Bem ou mal esses belvederes se conservam e ao atravessarmos a Baia de Todos os Santos podemos ainda identifica-los pelas torres das igrejas que lhes dão nome. Outros se perderam, como a tricentenária igreja da Sé vendida por trinta moedas a uma empresa de bondes, que trinta anos mais tarde também viraria sucata. Um dos últimos mirantes privados desapareceu com a construção da Mansão dos Cardeais.
É especialmente por seu valor urbanístico e paisagístico que o tombamento da igreja da Vitória com seu átrio circundante se justifica. Não é demais lembrar que aquela igreja nasceu olhando a baia e só no final do século XIX teve sua fachada voltada para o interior. Sempre defendi mecanismos compensatórios às limitações impostas pelo tombamento em beneficio da sociedade. Infelizmente só em Salvador instrumentos urbanísticos modernos, como a transferência do direito de construir, Transcon, não se aplica aos tombamentos e à criação de praças e áreas verdes, como foi concebido no primeiro mundo.
São essas e outras questões que precisam ser discutidas tematicamente e sem atropelo, para a formulação do novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. A preservação da qualidade de vida de Salvador deve ser a preocupação primeira do PDDU, de tal modo que no futuro não seja necessário a adoção de medidas excepcionais, por uma instancia superior de poder, para assegurar a preservação de valores urbanos que não são apenas locais.
Foi com esta visão que defendi no Conselho Consultivo do IPHAN a manutenção do tombamento provisório do Corredor da Vitória, já descaracterizado, até que se lograsse um compromisso formal da Prefeitura de Salvador de reduzir drasticamente os coeficientes urbanísticos daquela área e frear a destruição continuada da encosta com charriots e piers. Não podia, por outro lado, endossar uma proposta inócua e escapatória, que tombava apenas as árvores da rua e meia dúzia de jardins e edificações públicas, alguns dos quais já tombados, para não enfrentar a pressão do mercado. Isto seria premiar o statu quo forjado pelo mesmo mercado, uma situação antagonicamente diversa a do tombamento dos “jardins” paulistanos.
Como eu previa, tal compromisso, negociado após o arquivamento do processo, nunca foi honrado e os alvarás para construção de novos espigões continuam a ser expedidos. O que o clube dos privilegiados moradores locais não compreende é que a persistirem os coeficientes urbanísticos atuais, com edifícios de 34 andares e seis carros por apartamento, de pouco serve preservar oitiseiros e fachadas empalhadas, pois em pouco tempo o corredor polonês da Vitória entrará em colapso circulatório e ambiental urbano. Em Manhattan, com suas avenidas de seis pistas, já não se permite mais garagens na ilha.
São questões como essas, não só da Vitória, como do Litoral Ferroviário, do Miolo e da Orla Atlântica que precisam ser discutidas em foros temáticos qualificados e não apenas em redundantes assembléias suburbanas. Se o debate técnico do PDDU ainda não foi aberto, a sociedade pode força-lo. Por isto mesmo, atos tresloucados, como o dos herdeiros de Arnold Wildberger e seus sócios, de demolirem sua mansão às escondidas, constituem um tiro no pé e uma grosseria urbana que mancha a memória e a imagem de seus maiores, e destrói um naco da cidade que é de todos nós.


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