Artigos de Jornal
Uma cidade muito engraçada, sem ruas, nem calçadas
Uma rua é uma rua, não uma rodovia. Se essa rua fosse minha/ Eu mandava ladrilhar/ Com pedrinhas de brilhante/ Para meu amor passar. Sociólogos e antropólogos, como Roberto Damatta, têm mostrado que as ruas são espaços privilegiados de sociabilidade. Todas as cidades do mundo têm ruas onde as pessoas se encontram, festejam e protestam. No Rio de Janeiro a principal é a Av. Rio Branco, antiga Av. Central, em São Paulo é a Av. Paulista. Cidades do primeiro mundo também têm ruas integradoras, como Paris com a Ave. des Champs Élysées e Nova York com a 5ª Avenida cruzando a Broadway, sem viadutos, no Time Square.
Nessas grandes cidades há inclusive hierarquias de ruas, como a 46th Street, de Nova York, de pequenas lojas e restaurantes de brasileiros e a rua de antigos imigrantes italianos e judeus. São Paulo tem a chiquérrima Av. Paulista e ruas suburbanas de gente humilde: São casas simples/ Com cadeiras nas calçadas/ E na fachada/ Escrito em cima que é um lar,/ Pelas varandas/ Flores tristes e baldias[...] segundo a musica de Garoto (1945) com arranjo de Baden Power e letra de Vinícius de Morais e Chico Buarque, de 20 anos mais tarde. Salvador já teve também sua rua chiquérrima, a Rua Chile, onde prefeitos e governadores davam audiências a seus súditos na Gruta de Lurdes, Cuíca de Santo Amaro e Jacaré faziam a crônica da sociedade nas calçadas, a enigmática Dama de Roxo esvoaçava com seus véus e meninas-moças debutavam para as lentes de Leão Rozemberg nos degraus da escada rolante das Duas Américas.
Havia também uma rua de classe média baixa cantada por Ary Barroso: Na Baixa dos Sapateiros/ Encontrei um dia/ A morena mais frajola da Bahia [...] Meu Senhor do Bonfim/ Arranje outra morena/ Igualzinha pra mim. Uma síntese perfeita da Bahia mestiça e sincrética. Pois é, Salvador não tem mais a Rua Chile, nem outras vias que se possam chamar de ruas, só viadutos vedados aos pedestres. Aonde se pode hoje caminhar, encontrar conhecidos, bater papo, olhar vitrines e ver, como Vinicius e Tom, uma garota passar? Em vez de calçadas temos passarelas a cada quilometro, para não sermos atropelados e atrapalhar o tráfego.
A Estrada da Rainha, nome lindo, é hoje um terrapleno expresso que não se pode cruzar. As avenidas Antonio Carlos Magalhães e Juracy Magalhães Junior, de arvores frondosas, foram transformadas em selvas de pilares de concreto armado. Se vivos fossem, Orlando Gomes e “vovô” entrariam na Justiça para tirarem seus nomes de antigas avenidas que foram transformadas em viadutos baldios. Em lugar de vizinhos, crianças, pets e o verde só existem agora o cinza do concreto e o preto do asfalto. A Neossoterópolis é uma cidade nada engraçada, com laje por cima e desgovernada, que vontade de chorar.
Meu Senhor do Bonfim, arranje uma Salvador igualzinha pra mim!