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Tectônica de resgate do sertão

  • 12 de Junho de 2022

Cansado de esbravejar sem eco sobre a desordem urbana de Salvador, que destrói seu patrimônio, resolvi expor outras vozes que bradam no (de)sertão árido e espinhoso de nosso interior. São colegas arquitetos que alinharam ao projeto outras linguagens, como a poesia, a música e a pintura. Para fugir da hierarquização aleatória e involuntária da ladainha de personagens, resolvi ordená-los alfabeticamente. Para minha surpresa, esta ordenação se revelou também cronológica.

Começo falando do saudoso Amélio Amorim. Ele começou matreiramente desafiando o conservadorismo dos oligarcas de sua terra natal espalhando que não existia em Feira de Santana coronel com cabedal capaz de pagar seus honorários como arquiteto. Sua estratégia começou a frutificar e ele se transformou em um mini-empresário dono de uma galeria de arte, onde expunha suas pinturas e de colegas locais. Resolveu empreender o complexo turístico Carro de Boi, que compreendia hotel, restaurante, bar e boate. Mas o dinheiro só deu para abrigar estas últimas funções em um espaço em forma de jerimum. Com sua morte, o jerimum apodreceu e foi incendiado. O governador feirense João Durval resolveu restaurá-lo e transformá-lo num centro cultural sertanejo com seu nome.

O segundo riscador nasceu em Conquista, cursou arquitetura na UFBA, mas vive no mato, onde cria cabras e bodes. Elomar é poeta, compositor e violeiro e se inspira em tradições culturais cristãs e judaicas medievais. Tradições que teimam em persistir no Nordeste e que inspiram também Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Guimarães Rosas. Elomar, o ermitão, virou um fenômeno nacional e suas canções são embaladas nas vozes esganiçadas e belas de Xangai, Geraldo Azevedo, Fagner e Elba Ramalho.

José Guilherme Cunha, arquiteto e trovador, não pinta ou esculpe tacos de xilogravura, mas é um cultor da literatura de cordel. Sua Guerra de Canudos, versão rimada de Os Sertões de Euclides, foi premiada em concurso da Academia de Letras da Bahia. José Guilherme é defensor da tradição oral do sertão e odeia a pseudocultura countrypira dos rodeios com cowboys de jeans e chapéus de abas grandes cavalgando touros miúras importados.

Juracy Dória fecha a galeria de construtores de trincheiras sertanejas. O poeta feirense começou sua arte armando trempes de varas como andaimes sob a sombra acarpetada de estrume dos umbuzeiros da caatinga, onde ele pendurava estandartes/verônicas de couro cru. Ganhou o mundo e foi selecionado para representar o Brasil na 43ª Bienal de Veneza. Os italianos não entenderam, de início, que a sua arte não era apenas escultórica, mas performática, e evocava o perfume dos currais nordestinos.

Brava gente do sertão que luta para preservar suas tradições ao contrário das lideranças soteropolitanas que se calam diante da destruição de Salvador pela especulação imobiliária legitimada pelas autoridades municipais.


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