Artigos de Jornal


Concreto livre, leve e belo

  • 05 de Janeiro de 2008

Completou 100 anos, no último dia 15 de dezembro, o mestre Oscar Niemeyer, ainda sonhando e desenhando o espaço com o dedo no ar, como fazia na infância, para em seguida baixa-lo em sua prancheta. Este fato, por si só notável, se reveste de excepcional significação diante do papel histórico que ele teve na transformação da arquitetura moderna, no século XX, e da qualidade do conjunto de sua produção.
Oscar atravessou incólume todos os modismos que grassaram a arquitetura moderna, nos seus 75 anos de profissão: o funcionalismoa do International Style, o brutalismo terceiro-mundista de Le Corbusier, o metabolismo japonês; o pós-modernismo e o desconstrutivismo do capitalismo pós-industrial norte americano. Sua obra não se enquadra em nenhum desses escaninhos e se mostra, hoje, como há 70 anos, de uma enorme unidade e frescor.
Para entendermos sua contribuição à arquitetura moderna é preciso recuar ao final da década de 1930, quando ele começa sua trajetória. Naquele período a Europa, saída de uma guerra e às vésperas de outra, enfrentava o desafio da reconstrução. Surgem assim, nos dois países mais golpeados pela guerra, escolas de arquitetura muito voltadas para a estandardização e industrialização da arquitetura, exageradamente assépticas e ascéticas. Na Alemanha, o Bauhaus, com figuras como Walter Gropius e Mies van der Rohe, propunha uma arquitetura de aço e vidro, que desembocaria nas insossas caixas de cristal difundida à exaustão no Primeiro Mundo, após a II Grande Guerra. Na França, o grupo dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, CIAM, liderados por Le Corbusier, pregava candidamente a reforma urbana modernista como sendo a mola da transformação social.
Le Corbusier se converte no grande propagandista da nova arquitetura publicando livros onde defendia conceitos radicais, como “a casa é a maquina de morar” e reduzindo a arquitetura moderna a cinco pontos: o pilotis; o terraço jardim; a planta livre, que não precisava reproduzir as divisórias inferiores; a janela continua; e a fachada sem mais função estrutural. Pouco aceito em uma Europa conservadora, Le Corbusier empreende uma cruzada pelos paises do Terceiro Mundo para divulgar a nova arquitetura, fazendo conferências e propondo projetos de edifícios, cidades universitárias e planos urbanísticos. Com esse propósito, ele visita a América do Sul, o Oriente Médio e a Índia, mas só teria sucesso como arquiteto tardiamente.

Heresia

Falar de beleza e curvas na arquitetura nessa época era uma dupla heresia. Primeiro porque só o social e o econômico tinham legitimidade dentro de uma cultura positivista e mecanicista e pósguerro. Segundo, porque a curva entrava em conflito com os padrões industriais da época, que só produziam longarinas retas e vidros planos. As construções em concreto seguiam as mesmas normas de cálculo do aço, reduzindo qualquer edifício a pilares e vigas retas. As únicas experimentações estéticas com o concreto se devem a Erich Mendelsohn em uma série de croquis visionários de edifícios monumentais pesadíssimos, que mais pereciam casamatas. Apenas um exemplar dessa arquitetura seria edificado, a Torre Einstein, em Postdam, Alemanha, mas em alvenaria de tijolos.
Em sua segunda viagem ao Brasil, em 1936, a convite de Gustavo Capanema, soprado por Lúcio Costa, para coordenar a equipe de arquitetos brasileiros que desenvolveria o projeto do Ministério de Educação e Saúde, atual Palácio Gustavo Capanema, no Riode janeiro, Le Corbusier conhece Niemeyer e se surpreende com sua habilidade em desenhar espaços, destacando-o dentro da equipe. E seria ele quem, efetivamente, reformularia o esboço traçado por Le Corbusier para o edifício baixo à beira da Baia da Guanabara, enquanto este se encontrava em Buenos Aires fazendo conferênc ias. É bem conhecida a rejeição de Le Corbusier ao novo projeto, quando da escala do seu voo de retorno de Buenos Aires, e sua mudança de atitude, nove anos mais tarde, ao ver construído e consagrado mundialmente o Ministério da Educação e Saúde.

O Intérprete de um país novo

Costuma-se dizer que Niemeyer é um discípulo de Le Corbusier. Não é verdade. Suas obras são antagônicas. Le Corbusier é o homem da teorização, dos esquemas e fórmulas, do purismo geométrico. Ele cantou literalmente, em prosa e verso, a linha e o ângulo retos. Niemeyer é o homem da intuição, da diversidade, que não acredita em regras fixas, que odeia a reta e ama as curvas. A atribuição por ele da autoria dos projetos do Ministério de Educação e Saúde e da sede das Nações Unidas a Le Corbusier é mais que uma gentileza com o mestre francês, é uma declaração inequívoca de que ele não considera aqueles edifícios sua arquitetura.
É neste cenário que Niemeyer realiza a sua primeira obra verdadeiramente moderna, o Pavilhão do Brasil na Feira de Nova Iorque de 1939, em co-autoria com Lúcio Costa. Ali já estão as principais características de sua arquitetura, as fachadas onduladas, as rampas, as marquises e mezaninos coleantes, os grandes pés direitos e a integração das artes. Mas é na Pampulha, três anos depois, que ele tem a grande oportunidade de sua vida profissional, com a construção dos equipamentos de todo um bairro, onde dá asas à imaginação, com a famosa marquise serpenteforme da Casa do Baile e o manto ondulado da capelinha de São Francisco. O concreto começava a ser usado como elemento plástico esvoaçante pela primeira vez no mundo.
Nós estávamos desconstruindo o ecletismo da Imperial Academia de Belas Artes, não havíamos passado por uma guerra cruel e não possuíamos siderúrgicas, mas em compensação éramos um país novo, saído da Revolução de 30, tínhamos um povo alegre e uma tradição de construção artesanal, éramos e somos o país do futebol e da ginga do samba. Niemeyer soube sintetizar tudo isto numa arquitetura de formas livres, mas estruturadas, com grandes vãos e contornos sensuais, dando ao concreto uma plasticidade e leveza que os europeus e norte americanos só começariam a compreender e imitar dez anos mais tarde.
Seguem-se o Parque Ibirapuera (1951), com sua marquise esparramada, e o conjunto de palácios e igrejas de Brasília, começado em 1956. Mas Oscar não estava só, senão inserido em um movimento mais amplo da arte brasileira de caráter nativista, nascido com a antropofagia, dos anos 20, e continuado na obra amazônica de Villa Lobos, nos jardins tropicais de Burle Marx, e na arquitetura geomórfica de Affonso Eduardo Reidy em Pedregulho (1950), e no Parque do Flamengo no Rio de Janeiro. Acrescente-se a isto os avanços do cálculo do concreto no país, capitaneado por Emílio Baungart e pelo poeta e engenheiro Joaquim Cardoso, calculista da maior parte das obras de Niemeyer, inclusive as de Brasília.

Precursor

Dez anos mais tarde, Le Corbusier revê seu antigo discurso e prática cartesiana, incorporando a curva e valores escultóricos à arquitetura, na capela de Ronchamp, França, e nos palácios de Chandigarh, na Índia, mas sempre com construções muito pesadas. Na Espanha, Itália e México, engenheiros como Torroja, Nervi e Candela começaram, no final da década de 1930, a executar cascas curvas segundo formas geométricas simples de fácil cálculo, como as cúpulas hemisféricas, as abóbadas parabólicas e as parabolóides hiperbólicas, que não admitem muitas variações. Mas não no conceito de formas livres, como as obras de Niemeyer. Nos EUA, as formas livres em concreto foram introduzidas pelo finlandês Eero Saarinen nos terminais da TWA no Aeroporto John Kennedy, de Nova York (1956-62) e do aeroporto Foster Dulles de Washington (1960-1962). Pode-se afirmar que Niemeyer foi o pioneiro do uso da curva e da forma livre na arquitetura moderna, adoçando-a e humanizando-a.
Mas deixemos de parte sua contribuição histórica. É impressionante como Niemeyer, aos 100 anos de vida, continua criativo, sem se repetir, e fiel a seu discurso de esquerda. Espanta não só pela qualidade, como pela quantidade de sua obra. São obras recentes a taça do Museu de Arte Contemporânea e o Teatro Popular, de Niterói, o Teatro do Parque Ibirapuera e o recém-inaugurado Museu Nacional de Brasília. Estão prestes a se iniciar ou em conclusão obras como o Centro Administrativo de Belo Horizonte, o Teatro Bolshoi (SC), o Edifício Central de Itaipu, o Instituto Oscar Niemeyer e Escola de Arquitetura e Humanidades, de Niterói, e o Museu do Cinema Brasileiro. Estão na prancheta a monumental Praça do Povo, em Brasília, e obras no exterior, como os centros culturais de Avillez Espanha, e Valparaiso Chile; o Parque Aquático de Potsdam, na Alemanha; a Embaixada do Brasil em Havana e um auditório em Ravello, Itália. Sua obra brasileira acaba de ser tombada pelo Iphan para que o concreto tenha uma vida pelo menos igual à de seu criador. Parabéns, Oscar Niemeyer!

SSA: A Tarde, 05/01/2008


Últimos Artigos