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Concreto livre, leve e belo
Completou 100 anos, no último dia 15 de dezembro, o mestre Oscar Niemeyer,
ainda sonhando e desenhando o espaço com o dedo no ar, como fazia na infância,
para em seguida baixa-lo em sua prancheta. Este fato, por si só notável, se
reveste de excepcional significação diante do papel histórico que ele teve na
transformação da arquitetura moderna, no século XX, e da qualidade do conjunto
de sua produção.
Oscar atravessou incólume todos os modismos que grassaram a arquitetura moderna,
nos seus 75 anos de profissão: o funcionalismoa do International Style, o
brutalismo terceiro-mundista de Le Corbusier, o metabolismo japonês; o
pós-modernismo e o desconstrutivismo do capitalismo pós-industrial norte
americano. Sua obra não se enquadra em nenhum desses escaninhos e se mostra,
hoje, como há 70 anos, de uma enorme unidade e frescor.
Para entendermos sua contribuição à arquitetura moderna é preciso recuar ao
final da década de 1930, quando ele começa sua trajetória. Naquele período a
Europa, saída de uma guerra e às vésperas de outra, enfrentava o desafio da
reconstrução. Surgem assim, nos dois países mais golpeados pela guerra, escolas
de arquitetura muito voltadas para a estandardização e industrialização da
arquitetura, exageradamente assépticas e ascéticas. Na Alemanha, o Bauhaus, com
figuras como Walter Gropius e Mies van der Rohe, propunha uma arquitetura de aço
e vidro, que desembocaria nas insossas caixas de cristal difundida à exaustão no
Primeiro Mundo, após a II Grande Guerra. Na França, o grupo dos Congressos
Internacionais de Arquitetura Moderna, CIAM, liderados por Le Corbusier, pregava
candidamente a reforma urbana modernista como sendo a mola da transformação
social.
Le Corbusier se converte no grande propagandista da nova arquitetura publicando
livros onde defendia conceitos radicais, como “a casa é a maquina de morar” e
reduzindo a arquitetura moderna a cinco pontos: o pilotis; o terraço jardim; a
planta livre, que não precisava reproduzir as divisórias inferiores; a janela
continua; e a fachada sem mais função estrutural. Pouco aceito em uma Europa
conservadora, Le Corbusier empreende uma cruzada pelos paises do Terceiro Mundo
para divulgar a nova arquitetura, fazendo conferências e propondo projetos de
edifícios, cidades universitárias e planos urbanísticos. Com esse propósito, ele
visita a América do Sul, o Oriente Médio e a Índia, mas só teria sucesso como
arquiteto tardiamente.
Heresia
Falar de beleza e curvas na arquitetura nessa época era uma dupla heresia.
Primeiro porque só o social e o econômico tinham legitimidade dentro de uma
cultura positivista e mecanicista e pósguerro. Segundo, porque a curva entrava
em conflito com os padrões industriais da época, que só produziam longarinas
retas e vidros planos. As construções em concreto seguiam as mesmas normas de
cálculo do aço, reduzindo qualquer edifício a pilares e vigas retas. As únicas
experimentações estéticas com o concreto se devem a Erich Mendelsohn em uma
série de croquis visionários de edifícios monumentais pesadíssimos, que mais
pereciam casamatas. Apenas um exemplar dessa arquitetura seria edificado, a
Torre Einstein, em Postdam, Alemanha, mas em alvenaria de tijolos.
Em sua segunda viagem ao Brasil, em 1936, a convite de Gustavo Capanema, soprado
por Lúcio Costa, para coordenar a equipe de arquitetos brasileiros que
desenvolveria o projeto do Ministério de Educação e Saúde, atual Palácio Gustavo
Capanema, no Riode janeiro, Le Corbusier conhece Niemeyer e se surpreende com
sua habilidade em desenhar espaços, destacando-o dentro da equipe. E seria ele
quem, efetivamente, reformularia o esboço traçado por Le Corbusier para o
edifício baixo à beira da Baia da Guanabara, enquanto este se encontrava em
Buenos Aires fazendo conferênc ias. É bem conhecida a rejeição de Le Corbusier
ao novo projeto, quando da escala do seu voo de retorno de Buenos Aires, e sua
mudança de atitude, nove anos mais tarde, ao ver construído e consagrado
mundialmente o Ministério da Educação e Saúde.
O Intérprete de um país novo
Costuma-se dizer que Niemeyer é um discípulo de Le Corbusier. Não é verdade.
Suas obras são antagônicas. Le Corbusier é o homem da teorização, dos esquemas e
fórmulas, do purismo geométrico. Ele cantou literalmente, em prosa e verso, a
linha e o ângulo retos. Niemeyer é o homem da intuição, da diversidade, que não
acredita em regras fixas, que odeia a reta e ama as curvas. A atribuição por ele
da autoria dos projetos do Ministério de Educação e Saúde e da sede das Nações
Unidas a Le Corbusier é mais que uma gentileza com o mestre francês, é uma
declaração inequívoca de que ele não considera aqueles edifícios sua
arquitetura.
É neste cenário que Niemeyer realiza a sua primeira obra verdadeiramente
moderna, o Pavilhão do Brasil na Feira de Nova Iorque de 1939, em co-autoria com
Lúcio Costa. Ali já estão as principais características de sua arquitetura, as
fachadas onduladas, as rampas, as marquises e mezaninos coleantes, os grandes
pés direitos e a integração das artes. Mas é na Pampulha, três anos depois, que
ele tem a grande oportunidade de sua vida profissional, com a construção dos
equipamentos de todo um bairro, onde dá asas à imaginação, com a famosa marquise
serpenteforme da Casa do Baile e o manto ondulado da capelinha de São Francisco.
O concreto começava a ser usado como elemento plástico esvoaçante pela primeira
vez no mundo.
Nós estávamos desconstruindo o ecletismo da Imperial Academia de Belas Artes,
não havíamos passado por uma guerra cruel e não possuíamos siderúrgicas, mas em
compensação éramos um país novo, saído da Revolução de 30, tínhamos um povo
alegre e uma tradição de construção artesanal, éramos e somos o país do futebol
e da ginga do samba. Niemeyer soube sintetizar tudo isto numa arquitetura de
formas livres, mas estruturadas, com grandes vãos e contornos sensuais, dando ao
concreto uma plasticidade e leveza que os europeus e norte americanos só
começariam a compreender e imitar dez anos mais tarde.
Seguem-se o Parque Ibirapuera (1951), com sua marquise esparramada, e o conjunto
de palácios e igrejas de Brasília, começado em 1956. Mas Oscar não estava só,
senão inserido em um movimento mais amplo da arte brasileira de caráter
nativista, nascido com a antropofagia, dos anos 20, e continuado na obra
amazônica de Villa Lobos, nos jardins tropicais de Burle Marx, e na arquitetura
geomórfica de Affonso Eduardo Reidy em Pedregulho (1950), e no Parque do
Flamengo no Rio de Janeiro. Acrescente-se a isto os avanços do cálculo do
concreto no país, capitaneado por Emílio Baungart e pelo poeta e engenheiro
Joaquim Cardoso, calculista da maior parte das obras de Niemeyer, inclusive as
de Brasília.
Precursor
Dez anos mais tarde, Le Corbusier revê seu antigo discurso e prática cartesiana,
incorporando a curva e valores escultóricos à arquitetura, na capela de Ronchamp,
França, e nos palácios de Chandigarh, na Índia, mas sempre com construções muito
pesadas. Na Espanha, Itália e México, engenheiros como Torroja, Nervi e Candela
começaram, no final da década de 1930, a executar cascas curvas segundo formas
geométricas simples de fácil cálculo, como as cúpulas hemisféricas, as abóbadas
parabólicas e as parabolóides hiperbólicas, que não admitem muitas variações.
Mas não no conceito de formas livres, como as obras de Niemeyer. Nos EUA, as
formas livres em concreto foram introduzidas pelo finlandês Eero Saarinen nos
terminais da TWA no Aeroporto John Kennedy, de Nova York (1956-62) e do
aeroporto Foster Dulles de Washington (1960-1962). Pode-se afirmar que Niemeyer
foi o pioneiro do uso da curva e da forma livre na arquitetura moderna,
adoçando-a e humanizando-a.
Mas deixemos de parte sua contribuição histórica. É impressionante como
Niemeyer, aos 100 anos de vida, continua criativo, sem se repetir, e fiel a seu
discurso de esquerda. Espanta não só pela qualidade, como pela quantidade de sua
obra. São obras recentes a taça do Museu de Arte Contemporânea e o Teatro
Popular, de Niterói, o Teatro do Parque Ibirapuera e o recém-inaugurado Museu
Nacional de Brasília. Estão prestes a se iniciar ou em conclusão obras como o
Centro Administrativo de Belo Horizonte, o Teatro Bolshoi (SC), o Edifício
Central de Itaipu, o Instituto Oscar Niemeyer e Escola de Arquitetura e
Humanidades, de Niterói, e o Museu do Cinema Brasileiro. Estão na prancheta a
monumental Praça do Povo, em Brasília, e obras no exterior, como os centros
culturais de Avillez Espanha, e Valparaiso Chile; o Parque Aquático de Potsdam,
na Alemanha; a Embaixada do Brasil em Havana e um auditório em Ravello, Itália.
Sua obra brasileira acaba de ser tombada pelo Iphan para que o concreto tenha
uma vida pelo menos igual à de seu criador. Parabéns, Oscar Niemeyer!
SSA: A Tarde, 05/01/2008