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O castelo e quartel das portas de Santa Catarina
Face as reservas de alguns e das especulações fantasiosas de outros com
referências aos muros encontrados no Pelourinho, atitudes que só comprometem a
preservação e a destinação daquelas ruínas, cabe os seguintes esclarecimentos. A
localização de uma das portas da cidade na altura do Pelourinho está assinalada
em crônicas e atos da Câmara Municipal bem como na cartografia e iconografia dos
séculos XVI e XVIII e não constitui nenhuma novidade para os estudiosos de
história da Bahia.
Quando em 1968, com a colaboração de outros colegas, realizamos o estudo
preliminar da restauração e reintegração do Núcleo Histórico do Salvador, por
solicitação do IPHAN tentamos localizar exatamente a posição das referidas
portas. Não acreditávamos que não tivessem restado vestígios, mas imaginávamos
que estes seriam apenas fundações reaproveitadas nas atuais casas. A
inexistência de levantamentos cadastrais e as dificuldades de inspeção das
casas, então ocupadas, não permitiu a sua localização.
Uma questão de método
Os estudos que estamos realizando no âmbito da cadeira de Teoria da Arquitetura
da Universidade Federal da Bahia e que identificaram os remanescentes do Castelo
das Portas do Carmo no prédio de n.13 do Largo Pelourinho obedecem às técnicas
de Leitura e Interpretação dos Monumentos, disciplina básica de toda atividade
de restauração na Europa. Tal método alia às informações de caráter histórico a
interpretação semântica e sintática da obra de arquitetura e de tecido urbano,
pondo em evidências as concepções compositivas e proporcionais da época e
analisando o emprego de materiais e técnicas construtivas desde um
ponto-de-vista estratigráfico.
Entre nós, a maioria dos estudos realizados sobre monumentos foram feitos por
historiadores. Alguns destes trabalhos chegam mesmo a ser exaustivos do
ponto-de-vista histórico, mas apresentam as limitações de um método
exclusivamente historicista. Compreende-se, portanto, a reserva de alguns
historiadores face a descoberta, por desconhecerem as provas construtivas.
Convém salientar que a realização de obras em edifícios antigos sem uma
conveniente interpretação formal e construtiva pode conduzir a destruição de
testemunhos da maior importância para história da arquitetura e da cidade.
Os muros
Os muros encontrados não são, como muitos pensam, meras fundações. São muros com
sete metros de altura e trinta de desenvolvimento, dispostos em forma de “U” e
largura, na base, variando entre um metro e cinquenta e dois metros. Dois destes
muros servem de paredes laterais da casa e o terceiro a secciona ao meio impondo
dificuldades de caráter funcional e forçando a criação de um entre- piso na
parte posterior. Construtivamente não se explicaria a presença, na casa, de uma
divisória mais espessa e de material mais resistente –
pedra – que a caixa de muros externa. A seção de muros é típica dos arrimos para
contenção de terra de “cavaleiros”, moles que serviam para defesa e instalação
de peças de artilharia. Na parede que secciona ao meio a casa foram abertas,
provavelmente na época de sua adaptação à atual casa, uma porta ao nível do
térreo e de três ao nível do 1º andar. As paredes laterais não apresentam
vestígios de abertura. Vide figura 1.
Figura 1
A posição topográfica
A posição daqueles muros coincide com a das sucessivas obras de defesa
assinaladas em plantas da cidade, desde a que ilustra o livro Rezão do Estado do
Brasil (ca.1616) até a planta do Eng. João Massé (1712-1717) reproduzido por
Vilhena em suas Cartas. Este último documento, que pode ser facilmente
consultado, inclusive numa edição recente da Editora Itapoan, assinala as Portas
do Carmo ou de Santa Catarina a montante da Igreja do Rosário e afastada da
mesma por um espaço vazio, em posição idêntica a dos muros encontrados. A
conformação das obras de defesa das Portas do Carmo teria sido modificada, como
comprovam a cartografia e iconografia da época.
Figura 2
Sua última conformação é, sem dúvida, aquela levantada por José Antônio Caldas
(1759) e reproduzida em suas “Notícia Geral desta Capitania da Bahia”, pois 21
anos mais tarde, por sua perda de função devido a expansão da cidade e estado de
arruinamento, o Governador D. Rodrigo José de Meneses ordenaria sua demolição.
Comparando o levantamento do Castelo realizado por José Antônio Caldas (fig.2)
com os muros da casa nº13 verificamos a perfeita coincidência dos ângulos,
dimensões e altura da cabeceira leste daquele castelo com as referidas
alvenarias.
O pequeno beco entre as casas 13 e 11 seria, provavelmente, um caminho de ronda
que contornava a fortificação no tempo ou seria de acesso a algum pequeno
postigo que, como se sabe, eram frequentes na época. Neste particular é
interessante notar que os documentos mais antigos sempre se referem às “portas”,
no plural, do Carmo ou de Santa Catarina. Seccionado o terrapleno e esvaziado
seu aterro seriam seus muros reaproveitados como uma casa no final do século
XVIII.
Nota-se ainda que os lotes nº 4, 6 e 8 apresentam forma trapezoidal, não
correspondendo ao padrão normal, denotando uma perturbação do traçado urbano,
que corresponde à ocupação do vazio criado com a demolição do terrapleno do lado
do poente. Vide fig.3.
Os documentos históricos
Affonso Ruy na sua “História da Câmara Municipal da Cidade de Salvador” afirma
na pág. 98 que em 1780 D. Rodrigo José Menezes ordenou a demolição das Portas do
Carmo, mas o vencedor da concorrência só assinaria o termo respectivo em 6 de
outubro de 1787 comprometendo-se a ter ultimada a demolição em 31 de dezembro.
Afirma ainda Affonso Ruy: “Ao que parece, em 1781 foi deliberado levantar-se no
mesmo local um quartel para o corpo de guarda, que ocupava uma casa de aluguel
naquelas imediações”. O arrematador das duas obras foi o Cap. Geraldo dos Santos
Marques. Em 1790 ainda não teria sido concluído o quartel, que se fazia
financiado pelo Município.
O alto custo das obras do quartel provocou dos vereadores uma representação à
Rainha solicitando a minoração de tão pesado gravame, da qual extraímos os
seguintes trechos:
Acresce agora q. no anno prez. e estando continuando o mesmo Senado
arreedificação e ampliação de hum prédio urbano dos próprios da Coroa de V. Mag.
e o corpo de guarda situados na Cid. e alta as antigas portas do Carmo q o Exmo.
D. Rodrigo José Menezes no tempo que foi Govr. or Cap. General mandou
demolir...”
O documento explica que seus fragmentos caiam sobre as casas da cidade baixa e
afirma, adiante, que o governador mandou:
descarregar e demolir o grande pezo do paredão e portas, que eram inúteis a
defesa da Cidade, e a fermoziar aquele sítio, que há na cidade alta, e fazer uma
Praça e a alargar e decavar as Ruas para milhor expedição do público: Nesta
demolição entrou o Corpo de guarda antigo, e alguma pequena parte do prédio dos
próprios da Coroa de V. Mag. e por esta razão em o mesmo Exmo. Gov. or e Cap. um
General Ordenou ao Senado houvesse de fabricar Corpo de guarda e refazer o dito
prédio acusta dos bens do Senado...
Ao nosso entender o “prédio urbano dos próprios da Coroa” eram os remanescentes
do Castelo (atual casa nº13) que foi reedificado e ampliado pelo Senado, pois o
terrapleno oposto – lado do poente - teria sido demolido por ameaçar a cidade
baixa, enquanto o da parte do nascente seria demolido apenas o necessário a
“fazer uma Praça e a alargar e decavar as Ruas para milhor expedição ao público”
Convém salientar que a acepção do termo “prédio urbano” correspondia a de bem
imóvel e não necessariamente edifício. Um lote, um jardim, uma chácara, uma
fazenda, eram denominados de prédio urbano ou rural a depender de sua
localização.
O novo quartel
É claro que o novo corpo de guarda, que foi deliberado construir em 1871, não
seria construído na mesma situação do castelo que tinha sido demolido para
alargar a praça. Ele teria que ser construído fora da parte anteriormente
murada, localizada no novo alinhamento da mesma. Pode-se concluir também que
este quartel teria sido no Pelourinho, que na época estava totalmente edificado,
e os documentos não fazem referência a desapropriações ou demolições para este
efeito.
O estudo realizado naquele largo nos levou a concluir que aquele quartel são as
casas de nº 19 e 15-17. Esta conclusão baseia-se nas seguintes razões: do
ponto-de-vista urbanístico o espaço assinalado por Massé entre a Igreja e o
Castelo constituía um dos poucos terrenos ainda vagos na área. Nota-se que a
largura daqueles lotes, bem como o da casa nº 13, é bem superior ao do lote
normal do Pelourinho, que é de 6 a 9 metros. Do ponto-de-vista construtivo
verifica-se que aquelas casas apresentam as fachadas posteriores no mesmo
alinhamento, apesar de não paralelas a rua e uma coincidência surpreendente dos
seus vários níveis de piso principalmente considerando que são casas situadas
numa ladeira. E o que é mais importante, no curso das atuais obras verificou-se,
a existência de antigas portas ligando aquelas casas.
Outro elemento importante é a afirmativa de Affonso Ruy, baseadas em documentos
da Câmara, de que o quartel era trabalho de vulto que consumiu 30.400 telhas, o
que corresponde, com bastante aproximação à área das duas casas que é de cerca
de 660 m². A casa nº 15-17 foi acrescida de um pavimento e teve sua fachada
modificada em 1927 segundo o testemunho de pessoas que presenciaram tal reforma.
Do ponto-de-vista compositivo e funcional compreende-se que uma casa como a de
nº19 com 15m de frente não poderia ter seu acesso principal no extremo da
fachada. Verificou-se então que aquela portada está exatamente no meio da
fachada formada pelas casas 19 e 15-17. Suas fachadas posteriores apresentam a
mesma modulação de vãos embora algumas vergas tenham sido modificadas.
Por fim, aquele quartel transformado em residência teria se mantido como uma
única casa até pelo menos 1866, pois Melo Morais em seu “Brasil Histórico” (1
vol, pág. 262) descrevendo as freguesias da cidade, naquele ano, afirmava:
Ainda existe parte das muralhas dos castelos das Portas do Carmo, junto ou
fazendo parte da parede lateral da casa nobre no começo da ladeira da Baixa dos
Sapateiros pegada à Igreja do Rosário que foi do Coronel Manoel José Villela,
pelo lado nascente e do poente na casa em que reside e é proprietário o antigo e
inteligente advogado, bacharel em direito José Joaquim dos Santos.
A parede lateral a que ele se refere é a que divide a casa nº13 da de nº15 -17.
Foi o desconhecimento da sub-divisão da antiga casa que teria levado Braz do
Amaral apoiado evidentemente em Mello Moraes, a afirmar que aquelas ruínas
estavam “no sítio onde hoje está construída uma casa junto a Igreja do Rosário”
(Nota a “Memória Históricas e Políticas da Bahia” de Accioli). Para uma maior
certeza estamos tentando refazer a cadeia sucessória daqueles imóveis.
Tudo nos parece perfeitamente compreensível considerando que a demolição e as
duas obras foram feitas contemporaneamente e pelo mesmo empreiteiro. O leitor
poderá, porém, tirar suas próprias conclusões inclusive da conveniência ou não
da preservação daqueles monumentos.
Queremos salientar a compreensão da diretoria do SENAC permitindo a realização
de prospecções na casa de sua propriedade, sustando a concretagem das lajes que
deveriam ser engastadas nas muralhas e prontificando-se a realizar as obras de
restauração e valorização julgadas necessárias.
SSA: A Tarde 17/06/1972
PS – A numeração das casas pode ter mudado. No curso das obras, o andar térreo
da casa nº 13 foi transformado em um pequeno museu, mas a laje foi fundida para
criação do grande salão do Restaurante-Escola do SENAC. Propus ao IPAC, na
época, que se fizesse uma prospecção arqueológica no Largo do Pelourinho para
reconhecimento das fundações do castelo e refleti-las na pavimentação com pedras
de outras cores, mas nada foi feito.