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O castelo e quartel das portas de Santa Catarina

  • 17 de Junho de 1972

Face as reservas de alguns e das especulações fantasiosas de outros com referências aos muros encontrados no Pelourinho, atitudes que só comprometem a preservação e a destinação daquelas ruínas, cabe os seguintes esclarecimentos. A localização de uma das portas da cidade na altura do Pelourinho está assinalada em crônicas e atos da Câmara Municipal bem como na cartografia e iconografia dos séculos XVI e XVIII e não constitui nenhuma novidade para os estudiosos de história da Bahia.
Quando em 1968, com a colaboração de outros colegas, realizamos o estudo preliminar da restauração e reintegração do Núcleo Histórico do Salvador, por solicitação do IPHAN tentamos localizar exatamente a posição das referidas portas. Não acreditávamos que não tivessem restado vestígios, mas imaginávamos que estes seriam apenas fundações reaproveitadas nas atuais casas. A inexistência de levantamentos cadastrais e as dificuldades de inspeção das casas, então ocupadas, não permitiu a sua localização.

Uma questão de método

Os estudos que estamos realizando no âmbito da cadeira de Teoria da Arquitetura da Universidade Federal da Bahia e que identificaram os remanescentes do Castelo das Portas do Carmo no prédio de n.13 do Largo Pelourinho obedecem às técnicas de Leitura e Interpretação dos Monumentos, disciplina básica de toda atividade de restauração na Europa. Tal método alia às informações de caráter histórico a interpretação semântica e sintática da obra de arquitetura e de tecido urbano, pondo em evidências as concepções compositivas e proporcionais da época e analisando o emprego de materiais e técnicas construtivas desde um ponto-de-vista estratigráfico.
Entre nós, a maioria dos estudos realizados sobre monumentos foram feitos por historiadores. Alguns destes trabalhos chegam mesmo a ser exaustivos do ponto-de-vista histórico, mas apresentam as limitações de um método exclusivamente historicista. Compreende-se, portanto, a reserva de alguns historiadores face a descoberta, por desconhecerem as provas construtivas. Convém salientar que a realização de obras em edifícios antigos sem uma conveniente interpretação formal e construtiva pode conduzir a destruição de testemunhos da maior importância para história da arquitetura e da cidade.

Os muros

Os muros encontrados não são, como muitos pensam, meras fundações. São muros com sete metros de altura e trinta de desenvolvimento, dispostos em forma de “U” e largura, na base, variando entre um metro e cinquenta e dois metros. Dois destes muros servem de paredes laterais da casa e o terceiro a secciona ao meio impondo dificuldades de caráter funcional e forçando a criação de um entre- piso na parte posterior. Construtivamente não se explicaria a presença, na casa, de uma divisória mais espessa e de material mais resistente –
pedra – que a caixa de muros externa. A seção de muros é típica dos arrimos para contenção de terra de “cavaleiros”, moles que serviam para defesa e instalação de peças de artilharia. Na parede que secciona ao meio a casa foram abertas, provavelmente na época de sua adaptação à atual casa, uma porta ao nível do térreo e de três ao nível do 1º andar. As paredes laterais não apresentam vestígios de abertura. Vide figura 1.



Figura 1

A posição topográfica

A posição daqueles muros coincide com a das sucessivas obras de defesa assinaladas em plantas da cidade, desde a que ilustra o livro Rezão do Estado do Brasil (ca.1616) até a planta do Eng. João Massé (1712-1717) reproduzido por Vilhena em suas Cartas. Este último documento, que pode ser facilmente consultado, inclusive numa edição recente da Editora Itapoan, assinala as Portas do Carmo ou de Santa Catarina a montante da Igreja do Rosário e afastada da mesma por um espaço vazio, em posição idêntica a dos muros encontrados. A conformação das obras de defesa das Portas do Carmo teria sido modificada, como comprovam a cartografia e iconografia da época.



Figura 2


Sua última conformação é, sem dúvida, aquela levantada por José Antônio Caldas (1759) e reproduzida em suas “Notícia Geral desta Capitania da Bahia”, pois 21 anos mais tarde, por sua perda de função devido a expansão da cidade e estado de arruinamento, o Governador D. Rodrigo José de Meneses ordenaria sua demolição. Comparando o levantamento do Castelo realizado por José Antônio Caldas (fig.2) com os muros da casa nº13 verificamos a perfeita coincidência dos ângulos, dimensões e altura da cabeceira leste daquele castelo com as referidas alvenarias.
O pequeno beco entre as casas 13 e 11 seria, provavelmente, um caminho de ronda que contornava a fortificação no tempo ou seria de acesso a algum pequeno postigo que, como se sabe, eram frequentes na época. Neste particular é interessante notar que os documentos mais antigos sempre se referem às “portas”, no plural, do Carmo ou de Santa Catarina. Seccionado o terrapleno e esvaziado seu aterro seriam seus muros reaproveitados como uma casa no final do século XVIII.
Nota-se ainda que os lotes nº 4, 6 e 8 apresentam forma trapezoidal, não correspondendo ao padrão normal, denotando uma perturbação do traçado urbano, que corresponde à ocupação do vazio criado com a demolição do terrapleno do lado do poente. Vide fig.3.





Os documentos históricos

Affonso Ruy na sua “História da Câmara Municipal da Cidade de Salvador” afirma na pág. 98 que em 1780 D. Rodrigo José Menezes ordenou a demolição das Portas do Carmo, mas o vencedor da concorrência só assinaria o termo respectivo em 6 de outubro de 1787 comprometendo-se a ter ultimada a demolição em 31 de dezembro. Afirma ainda Affonso Ruy: “Ao que parece, em 1781 foi deliberado levantar-se no mesmo local um quartel para o corpo de guarda, que ocupava uma casa de aluguel naquelas imediações”. O arrematador das duas obras foi o Cap. Geraldo dos Santos Marques. Em 1790 ainda não teria sido concluído o quartel, que se fazia financiado pelo Município.
O alto custo das obras do quartel provocou dos vereadores uma representação à Rainha solicitando a minoração de tão pesado gravame, da qual extraímos os seguintes trechos:

Acresce agora q. no anno prez. e estando continuando o mesmo Senado arreedificação e ampliação de hum prédio urbano dos próprios da Coroa de V. Mag. e o corpo de guarda situados na Cid. e alta as antigas portas do Carmo q o Exmo. D. Rodrigo José Menezes no tempo que foi Govr. or Cap. General mandou demolir...”

O documento explica que seus fragmentos caiam sobre as casas da cidade baixa e afirma, adiante, que o governador mandou:

descarregar e demolir o grande pezo do paredão e portas, que eram inúteis a defesa da Cidade, e a fermoziar aquele sítio, que há na cidade alta, e fazer uma Praça e a alargar e decavar as Ruas para milhor expedição do público: Nesta demolição entrou o Corpo de guarda antigo, e alguma pequena parte do prédio dos próprios da Coroa de V. Mag. e por esta razão em o mesmo Exmo. Gov. or e Cap. um General Ordenou ao Senado houvesse de fabricar Corpo de guarda e refazer o dito prédio acusta dos bens do Senado...

Ao nosso entender o “prédio urbano dos próprios da Coroa” eram os remanescentes do Castelo (atual casa nº13) que foi reedificado e ampliado pelo Senado, pois o terrapleno oposto – lado do poente - teria sido demolido por ameaçar a cidade baixa, enquanto o da parte do nascente seria demolido apenas o necessário a “fazer uma Praça e a alargar e decavar as Ruas para milhor expedição ao público”
Convém salientar que a acepção do termo “prédio urbano” correspondia a de bem imóvel e não necessariamente edifício. Um lote, um jardim, uma chácara, uma fazenda, eram denominados de prédio urbano ou rural a depender de sua localização.


O novo quartel

É claro que o novo corpo de guarda, que foi deliberado construir em 1871, não seria construído na mesma situação do castelo que tinha sido demolido para alargar a praça. Ele teria que ser construído fora da parte anteriormente murada, localizada no novo alinhamento da mesma. Pode-se concluir também que este quartel teria sido no Pelourinho, que na época estava totalmente edificado, e os documentos não fazem referência a desapropriações ou demolições para este efeito.
O estudo realizado naquele largo nos levou a concluir que aquele quartel são as casas de nº 19 e 15-17. Esta conclusão baseia-se nas seguintes razões: do ponto-de-vista urbanístico o espaço assinalado por Massé entre a Igreja e o Castelo constituía um dos poucos terrenos ainda vagos na área. Nota-se que a largura daqueles lotes, bem como o da casa nº 13, é bem superior ao do lote normal do Pelourinho, que é de 6 a 9 metros. Do ponto-de-vista construtivo verifica-se que aquelas casas apresentam as fachadas posteriores no mesmo alinhamento, apesar de não paralelas a rua e uma coincidência surpreendente dos seus vários níveis de piso principalmente considerando que são casas situadas numa ladeira. E o que é mais importante, no curso das atuais obras verificou-se, a existência de antigas portas ligando aquelas casas.
Outro elemento importante é a afirmativa de Affonso Ruy, baseadas em documentos da Câmara, de que o quartel era trabalho de vulto que consumiu 30.400 telhas, o que corresponde, com bastante aproximação à área das duas casas que é de cerca de 660 m². A casa nº 15-17 foi acrescida de um pavimento e teve sua fachada modificada em 1927 segundo o testemunho de pessoas que presenciaram tal reforma. Do ponto-de-vista compositivo e funcional compreende-se que uma casa como a de nº19 com 15m de frente não poderia ter seu acesso principal no extremo da fachada. Verificou-se então que aquela portada está exatamente no meio da fachada formada pelas casas 19 e 15-17. Suas fachadas posteriores apresentam a mesma modulação de vãos embora algumas vergas tenham sido modificadas.
Por fim, aquele quartel transformado em residência teria se mantido como uma única casa até pelo menos 1866, pois Melo Morais em seu “Brasil Histórico” (1 vol, pág. 262) descrevendo as freguesias da cidade, naquele ano, afirmava:

Ainda existe parte das muralhas dos castelos das Portas do Carmo, junto ou fazendo parte da parede lateral da casa nobre no começo da ladeira da Baixa dos Sapateiros pegada à Igreja do Rosário que foi do Coronel Manoel José Villela, pelo lado nascente e do poente na casa em que reside e é proprietário o antigo e inteligente advogado, bacharel em direito José Joaquim dos Santos.

A parede lateral a que ele se refere é a que divide a casa nº13 da de nº15 -17. Foi o desconhecimento da sub-divisão da antiga casa que teria levado Braz do Amaral apoiado evidentemente em Mello Moraes, a afirmar que aquelas ruínas estavam “no sítio onde hoje está construída uma casa junto a Igreja do Rosário” (Nota a “Memória Históricas e Políticas da Bahia” de Accioli). Para uma maior certeza estamos tentando refazer a cadeia sucessória daqueles imóveis.
Tudo nos parece perfeitamente compreensível considerando que a demolição e as duas obras foram feitas contemporaneamente e pelo mesmo empreiteiro. O leitor poderá, porém, tirar suas próprias conclusões inclusive da conveniência ou não da preservação daqueles monumentos.
Queremos salientar a compreensão da diretoria do SENAC permitindo a realização de prospecções na casa de sua propriedade, sustando a concretagem das lajes que deveriam ser engastadas nas muralhas e prontificando-se a realizar as obras de restauração e valorização julgadas necessárias.

SSA: A Tarde 17/06/1972

PS – A numeração das casas pode ter mudado. No curso das obras, o andar térreo da casa nº 13 foi transformado em um pequeno museu, mas a laje foi fundida para criação do grande salão do Restaurante-Escola do SENAC. Propus ao IPAC, na época, que se fizesse uma prospecção arqueológica no Largo do Pelourinho para reconhecimento das fundações do castelo e refleti-las na pavimentação com pedras de outras cores, mas nada foi feito.
 


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