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A preservação do espaço urbano I

  • 27 de Outubro de 1972

A conservação e valorização dos bens culturais apresentam problemas, que embora pareçam de fácil resolução ou de somenos importância, implicam em decisões da maior complexidade e gravidade. Embora tais decisões dependam, em grande parte, da sensibilidade, os critérios de restauração e valorização veem sendo unificados em reuniões patrocinadas por órgãos internacionais como a UNESCO e OEA que através de documentos como a Carta de Veneza e as Normas de Quito, das quais o Brasil é signatário, estabeleceram princípios que são hoje universalmente aceitos. Vale lembrar que iniciativas semelhantes do Governo Federal resultaram nos Compromissos de Brasília e Salvador, que tiveram por meta orientar os governos estaduais em tão delicada missão.

Aquilo que foi a princípio uma disciplina subjetiva está se transformando numa verdadeira ciência do restauro. Dentre os problemas mais complexos da conservação e valorização dos bens de cultura sobressaem os referentes a preservação do ambiente urbano. É significativo que os primeiros parágrafos da Carta Internacional de Restauro se ocupe exatamente deste problema: "A noção de monumento compreende não só a criação arquitetônica isolada, como também o ambiente no qual ela se insere...O monumento é inseparável do meio no qual ele se situa e da história do qual é o testemunho. Reconhece-se, então, tanto o valor monumental dos grandes conjuntos arquitetônicos, quanto o das obras modestas que com o tempo adquiriram uma significação cultural e humana".

Na verdade, como perceber uma catedral gótica senão dentro da visão tangencial dos becos íngremes e sinuosos das cidades medievais, ou um palácio barroco senão através da visão em perspectiva das avenidas e alamedas que conduzem ao mesmo? Qualquer monumento, fora de seu contexto, não diz nada, ou quase nada. Mas em que consiste o ambiente a que se refere a Carta Internacional de Restauro? Ele compreende tanto o espaço urbano, tal corno o definiu Bruno Zevi, o espaço modelado pelas fachadas de urna rua ou praça, quanto as relações de volume, textura e cor de seus edifícios. A natureza imaterial do espaço urbano e a relatividade das relações volumétricas tornam particularmente difíceis a percepção e análise do ambiente urbano. Daí decorre uma série de equívocos relativos à preservação e valorização do ambiente urbano.

Estamos agora mesmo assistindo à demolição de uma quadra no centro da cidade, para criar vagas de estacionamento a pretexto de valorizar a Santa Casa de Misericórdia e seu hospital. Alega-se que aqueles edifícios não têm grande mérito arquitetônico individual, com o que concordamos, e que a nova perspectiva revelada da Santa Casa só iria valorizá-la, com o que não concordamos em absoluto.

Embora desconheçamos a fundamentação do projeto, podemos afirmar que tal tipo de intervenção tem suas raízes mais remotas na atitude romântica de alguns restauradores franceses da metade do século passado e que pregavam a chamada "restauração de liberação e as reconstruções em estilo "como presumivelmente deveria ser se fosse completado". As críticas a tal tipo de restaurações se avolumaram sob a influência das ideias do inglês ohn Ruskin e já no começo deste século ninguém ousava defender tais posições

Tal amadurecimento critico e o protesto dos artistas e intelectuais não impediram, porém, que ainda na década de 1930, os arquitetos de Mussolini destruíssem vários quarteirões dos Borghi del Vaticano para criar uma perspectiva nova da Igreja de São Pedro e ligar aquele monumento ao castelo de Sant'Angelo através da feia e dura Via della Conciliazione. O crítico de arte Carlo Argan, numa análise muito lúcida, mostra como a praça de Bernini com seus dois centros, enfatizadas pelas suas fontes, foi desenvolvida em função das duas pequenas ruas destruídas que lhe serviam de acesso e como aquele espaço foi secionado pela visão central do eixo da Via della Conciliazione. Para quem se deslocava através das ruas estreitas dos densos quarteirões medievais, o impacto da descoberta da imensa praça através da colunata de Bernini era una experiência inesquecível. Hoje, quando se dobra a esquina da Via della Cnnciliazinne, São Pedro surge entre duas fachadas neo-qualquer-coisa e quando finalmente se atinge a praça, já não há mais impacto nem descoberta a fazer A II Guerra Mundial felizmente evitou que se cumprisse outro projeto de Mussolini: "Dentro de cinco anos da Piazza Colonna, através de uma grande abertura, deve ser visível a mole do Panteon".

Quase ao mesmo tempo, realizava-se em Salvador um atentado semelhante, ainda que por razões diferentes, a demolirão de quatro quarteirões, inclusive o da igreja da Sé, para instalação de um terminal de bondes. Sobre as raízes este atentado o Professor Fernando Peres publicou o clássico “Memoria da Sé”. Além da perda daqueles edifícios, o espaço resultante, a praça da Sé, alterou toda a ordenação visual dos monumentos vizinhos. Como observou Robert Smith, embora edificada no século XVI, Salvador obedeceu a critérios urbanísticos tipicamente medievais e, consequentemente, de uma ordenação visual bidimensional e não em perspectiva. A exposição de fachadas criadas para ruas estreitas como fundo para uma praça e a exibição de empenas muitas delas desproporcionadas, como a da Catedral, além de alterarem o ambiente em que se inseriam, criaram uma imagem falsa dos mesmos monumentos. Como a percepção arquitetônica se faz através de visões sequenciais, a perspectiva da empena desproporcionada da Catedral sob um ângulo não previsto por seus construtores, prejudica de maneira sensível a percepção do monumento.

Assim, a demolição de edifícios mais novos para criar novas perspectivas de monumentos antigos, embora praticada por alguns restauradores de meado do século passado, não encontra hoje respaldo na teoria da restauração e do “mise en valeur” dos centros históricos e acarreta graves prejuízos ao monumento e a seu ambiente. Veremos no próximo artigo como a demolição da quadra vizinha à Santa Casa da Misericórdia poderá prejudicar a percepção daquele e de outros monumentos.

SSA: A Tarde, 27/10/72


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