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A preservação do espaço urbano II

  • 28 de Outubro de 1972

Vimos no artigo anterior a complexidade das decisões referente à preservação e valorização de bens culturais e em especial o ambiente urbano. Sem uma sólida base teórica tais decisões podem resultar em danos irreparáveis para o ambiente urbano. A nossa preocupação aqui é analisar algumas implicações de uma decisão que inspirada na valorização de um monumento, a Santa Casa da Misericórdia, não consegue, no nosso entender, tal efeito e traz em si implicações bem mais graves.

A demolição do quarteirão da Biblioteca Pública trará, basicamente, os mesmos prejuízos causados nela demolição dos quarteirões da Sé, isto é, a destruição da ordenação visual da praça e dos monumentos ali situados De um espaço quadrado, centrado, no qual os três planos de fachadas que o delimitam têm a mesma importância, passaremos a uma praça alongada, a um espaço orientado por um eixo que aponta em uma direção a urna empena que não foi feita para ser exposta e em outra a fachada, já muito transformada, do Palácio Rio Branco. Isto diminui a importância relativa do Paço Municipal, foco da antiga composição Também a relação volumétrica entre os edifícios será alterada com a duplicação da praça que reduzirá, inevitavelmente, a escala daqueles edifícios. Perderemos o aconchego espacial de uma rua como a Ladeira da Misericórdia tão baiana, ou tão medieval como quer Robert Smith, para exibirmos tridimensionalmente monumentos que foram feitos para comporem o espaço bidimensional de uma rua.

Não vamos nos deter excessivamente nos aspetos estéticos do problema. Há uma outra faceta igualmente importante a analisar, a continuidade histórica da cidade. Este problema vem à tona quando se argumenta que as construções que compõem a quadra em questão não são da mesma época da Misericórdia e Paço Municipal e são manifestações de “mau gosto”. A cidade como depositária da história foi sempre estilisticamente mesclada. Cada geração acrescenta á cidade sua contribuição. Não há cidades estilisticamente homogêneas, a não ser as cidades sem história, as "new towns", construídas de uma só vez. Mas mesmo estas, como Brasília, vão pouco a pouco se transfigurando, deixando de ser a manifestação do gênio de um arquiteto-urbanista para ser uma elaboração coletiva ao longo da história.

Resta apenas o problema do "gosto arquitetônico". A crítica de arte e da arquitetura já, há muito, superou o critério de julgamento baseados no gosto, que varia no tempo e no espaço. Do ponto de vista crítico, pouco importa que uma obra agrade ou deixe de agradar a um determinado grupo. No Brasil, a ideia de monumento está associada a edifício anterior ao século XIX. Mas tal critério já vem sendo mudado e mesmo construções atuais, que para nós parecem sem nenhum mérito, serão considerados monumentos para as gerações futuras. Do ponto-de-vista crítico, o eclético não tem menos mérito artístico e histórico do que o colonial.

A Biblioteca Pública, independentemente de agradar a alguns ou a muitos, representa uma etapa da evolução da cidade do Salvador, do mesmo modo que o atual Palácio Rio Branco, apesar das reformas que sofreu. A este propósito afirma textualmente a Carta Internacional de Restauro: "A unidade de estilo não deverá tornar-se um fim a ser alcançado no curso da restauração” e ainda “as construções, demolições ou novos acréscimos não poderão alterar as reações de volume e cor".

Para Marcel Poéte, que vem realizando importantes estudos sobre a cidade, a continuidade histórica ou persistência das mesmas se realiza através, tanto dos monumentos, signos físicos do passado, quanto do traçado urbano. Muitas vezes os monumentos são transformados ou substituídos, mas sobrevive a forma urbana, os signos físicos do “locus". Considere-se, por exemplo, as grandes transformações por que passou o Distrito da Sé, no começo deste século, especialmente no trecho compreendido entre a Praça Municipal e a Praça Castro Alves. Das antigas casas praticamente nada restou. Em seu lugar surgiram edifícios novos de muitos andares. Mas se compararmos a planta atual com aquela de 1612, que aparece no `Livro que dá razão do estado do Brasil", verificamos que o antigo traçado permanece intacto, com uma única exceção, as criminosas demolições da década de 1930, que resultaram na Praça da Sé. Tive a oportunidade de constatar a mesma coincidência do traçado atual de Olinda com aquele registrado por Barleus no século XVII, embora pouquíssimas estruturas tenham sido conservadas.

Seria tolerável até mesmo a substituição dos edifícios que compõem a quadra da Biblioteca por outros mais aptos aos programas atuais, desde que os novos edifícios, de caráter nitidamente atual, mantivessem a mesma relação de volumes com a praça e monumentos. Estaria mantido o espaço urbano. Estamos hoje diante do seguinte dilema: conservamos aquele espaço urbano em sua ordenação original, ainda que suas estruturas tenham sido modificadas ou substituídas, mas que testemunham as transformações históricas da cidade, ou destruímos aquele espaço - a primeira praça brasileira criada por Luis Dias e Tomé de Sousa - há mais de 500 anos, e assumirmos perante as gerações futuras a responsabilidade por tal ato.

Estas são as advertências que como restaurador não poderíamos nos furtar de fazer e que se não tiverem o poder de persuasão para alterar o curso das obras programadas, servirão, esperamos, a criar uma consciência das verdadeiras consequências de intervenções deste tipo, ainda quando inspiradas em sinceras intensões.

SSA; A Tarde, 28/10/72


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