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A preservação do espaço urbano II
Vimos no artigo anterior a complexidade das decisões referente à preservação
e valorização de bens culturais e em especial o ambiente urbano. Sem uma sólida
base teórica tais decisões podem resultar em danos irreparáveis para o ambiente
urbano. A nossa preocupação aqui é analisar algumas implicações de uma decisão
que inspirada na valorização de um monumento, a Santa Casa da Misericórdia, não
consegue, no nosso entender, tal efeito e traz em si implicações bem mais
graves.
A demolição do quarteirão da Biblioteca Pública trará, basicamente, os mesmos
prejuízos causados nela demolição dos quarteirões da Sé, isto é, a destruição da
ordenação visual da praça e dos monumentos ali situados De um espaço quadrado,
centrado, no qual os três planos de fachadas que o delimitam têm a mesma
importância, passaremos a uma praça alongada, a um espaço orientado por um eixo
que aponta em uma direção a urna empena que não foi feita para ser exposta e em
outra a fachada, já muito transformada, do Palácio Rio Branco. Isto diminui a
importância relativa do Paço Municipal, foco da antiga composição Também a
relação volumétrica entre os edifícios será alterada com a duplicação da praça
que reduzirá, inevitavelmente, a escala daqueles edifícios. Perderemos o
aconchego espacial de uma rua como a Ladeira da Misericórdia tão baiana, ou tão
medieval como quer Robert Smith, para exibirmos tridimensionalmente monumentos
que foram feitos para comporem o espaço bidimensional de uma rua.
Não vamos nos deter excessivamente nos aspetos estéticos do problema. Há uma
outra faceta igualmente importante a analisar, a continuidade histórica da
cidade. Este problema vem à tona quando se argumenta que as construções que
compõem a quadra em questão não são da mesma época da Misericórdia e Paço
Municipal e são manifestações de “mau gosto”. A cidade como depositária da
história foi sempre estilisticamente mesclada. Cada geração acrescenta á cidade
sua contribuição. Não há cidades estilisticamente homogêneas, a não ser as
cidades sem história, as "new towns", construídas de uma só vez. Mas mesmo
estas, como Brasília, vão pouco a pouco se transfigurando, deixando de ser a
manifestação do gênio de um arquiteto-urbanista para ser uma elaboração coletiva
ao longo da história.
Resta apenas o problema do "gosto arquitetônico". A crítica de arte e da
arquitetura já, há muito, superou o critério de julgamento baseados no gosto,
que varia no tempo e no espaço. Do ponto de vista crítico, pouco importa que uma
obra agrade ou deixe de agradar a um determinado grupo. No Brasil, a ideia de
monumento está associada a edifício anterior ao século XIX. Mas tal critério já
vem sendo mudado e mesmo construções atuais, que para nós parecem sem nenhum
mérito, serão considerados monumentos para as gerações futuras. Do
ponto-de-vista crítico, o eclético não tem menos mérito artístico e histórico do
que o colonial.
A Biblioteca Pública, independentemente de agradar a alguns ou a muitos,
representa uma etapa da evolução da cidade do Salvador, do mesmo modo que o
atual Palácio Rio Branco, apesar das reformas que sofreu. A este propósito
afirma textualmente a Carta Internacional de Restauro: "A unidade de estilo não
deverá tornar-se um fim a ser alcançado no curso da restauração” e ainda “as
construções, demolições ou novos acréscimos não poderão alterar as reações de
volume e cor".
Para Marcel Poéte, que vem realizando importantes estudos sobre a cidade, a
continuidade histórica ou persistência das mesmas se realiza através, tanto dos
monumentos, signos físicos do passado, quanto do traçado urbano. Muitas vezes os
monumentos são transformados ou substituídos, mas sobrevive a forma urbana, os
signos físicos do “locus". Considere-se, por exemplo, as grandes transformações
por que passou o Distrito da Sé, no começo deste século, especialmente no trecho
compreendido entre a Praça Municipal e a Praça Castro Alves. Das antigas casas
praticamente nada restou. Em seu lugar surgiram edifícios novos de muitos
andares. Mas se compararmos a planta atual com aquela de 1612, que aparece no
`Livro que dá razão do estado do Brasil", verificamos que o antigo traçado
permanece intacto, com uma única exceção, as criminosas demolições da década de
1930, que resultaram na Praça da Sé. Tive a oportunidade de constatar a mesma
coincidência do traçado atual de Olinda com aquele registrado por Barleus no
século XVII, embora pouquíssimas estruturas tenham sido conservadas.
Seria tolerável até mesmo a substituição dos edifícios que compõem a quadra da
Biblioteca por outros mais aptos aos programas atuais, desde que os novos
edifícios, de caráter nitidamente atual, mantivessem a mesma relação de volumes
com a praça e monumentos. Estaria mantido o espaço urbano. Estamos hoje diante
do seguinte dilema: conservamos aquele espaço urbano em sua ordenação original,
ainda que suas estruturas tenham sido modificadas ou substituídas, mas que
testemunham as transformações históricas da cidade, ou destruímos aquele espaço
- a primeira praça brasileira criada por Luis Dias e Tomé de Sousa - há mais de
500 anos, e assumirmos perante as gerações futuras a responsabilidade por tal
ato.
Estas são as advertências que como restaurador não poderíamos nos furtar de
fazer e que se não tiverem o poder de persuasão para alterar o curso das obras
programadas, servirão, esperamos, a criar uma consciência das verdadeiras
consequências de intervenções deste tipo, ainda quando inspiradas em sinceras
intensões.
SSA; A Tarde, 28/10/72