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Historias cruzadas, mas separadas

  • 11 de Março de 2012

O Sul dos Estados Unidos e o Nordeste do Brasil têm historias cruzadas. Ambos foram colonizados através do “plantation system” baseado no latifúndio e na escravatura. O de lá baseado no algodão o e o nosso na cana de açúcar. Até hoje não conseguimos nos libertar deste passado de atraso e de preconceito, que retardou a criação de um proletariado e uma economia de mercado, quando o capitalismo se alastrava pelo mundo e os mais idealistas sonhavam com o socialismo.

Cruzadas são também as historias de famílias das duas regiões, com amas negras que cuidavam de crianças brancas, em sociedades profundamente preconceituosas. Esta contradição é o âmago do romance de Kathryn Stockett “The help” que inspirou o filme homônimo apelidado aqui de “Histórias cruzadas”. Gosto mais do título brasileiro. A Academia de Hollywood acaba de premiar a atriz Octavia Spencer por seu desempenho como uma dessas amas nesse filme.

O romance se passa em Jackson, Mississipi, nos anos 60 em plena campanha dos Civil Rights. Uma dessas crianças brancas, recém formada em jornalismo, resolve investigar o que se passava com essas damas negras reprimidas e fardadas de cinza com o diadema branco da subserviência na cabeça. Inclusive a sua, despedida inexplicavelmente pelos pais e condenada à miséria e à morte. Descobre que o racismo era mascarado por um higienismo segundo o qual os negros transmitiam doenças que os brancos não possuíam. Mesmo depois da abolição das escolas e ônibus separados os sanitários das empregadas continuavam no fundo da casa.

O diretor do filme, Tate Taylor, contrasta o atraso das praticas sociais com a modernidade dos carros das famílias brancas. Um dos pontos altos do filme é o desfile de imensos carros de design zoomórfico como o Cadillac rabo-de-peixe conversível, que mais parecia uma sereia desfilando pelas ruas ou o Chevrolet Impala com asas traseiras de fazer inveja a Batman ou ainda os primeiros carros com faróis olho de gato e pálpebras móveis.

A abolição da escravatura se deu no Brasil 25 anos depois dos EE. UU., mas os Direitos Civis estão atrasados pelo menos meio século. Ainda há quem acredite que as cotas são uma invenção dos comunistas. Os sanitários e elevadores segregados, que só existem no Brasil, estão normatizados nos nossos códigos de obras. Conheci na Pituba um pequeno edifício que só possuía um elevador, mas este foi dividido no meio por um tabique, com acessos e comandos separados. Mesmo assim os patrões quase-brancos reclamavam dos empregados, quase-negros, que marcavam todos os andares só para pirraçar. Mas eles faziam o mesmo.

Aqui a segregação atende pelo nome de “serviço”. Um apartamento com “serviço completo” deve possuir tanque de lavagem ou despejo, “quarto de criada”, W.C. e acessos diferenciados. Nesses códigos os quartos de criadas obedecem ao principio do “mínimo habitável sem fazer força”, ou seja, 4 m². Como as empregadas de “tempo integral e dedicação exclusiva” estão se tornando raras, as imobiliárias passaram a apelidar estes cubículos, agora ligados ao corredor, de quartos reversíveis, para servir a outra máquina que não pode parar, o computador.

Mas os sanitários continuam separados, inclusive nos apartamentos mínimos, tipo sala-e-copulatório, como dizia Flávio de Carvalho. Conheci alguns, em apartamentos grandes e de luxo, que mal chegavam a ter 1m² e a empregada tinha que tomar banho sentada. No Mississipi na década de 60 a situação já era melhor. No filme uma patroa diz que os sanitários podiam ser iguais, mas separados. Quem ousaria dizer o mesmo aqui, hoje?

A integração racial nos EE. UU. custou a vida de dois presidentes: Lincoln y Kennedy. Aqui ela ainda não ocorreu. Mas a industrialização começa a libertar as empregadas. Não obstante esta situação, as imobiliárias continuam a lançar apartamentos com quatro suítes, mais lavabo e WC. Pobres donas de casa que terão de trabalhar para ajudar aos maridos, cuidar das crianças, cozinhar, lavar roupa e ainda esfregar tantos sanitários, inclusive o WC ! Quando as donas de casa serão libertadas?

SSA: A Tarde, 11/03/12


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