Artigos de Jornal
Historias cruzadas, mas separadas
O Sul dos Estados Unidos e o Nordeste do Brasil têm historias cruzadas. Ambos
foram colonizados através do “plantation system” baseado no latifúndio e na
escravatura. O de lá baseado no algodão o e o nosso na cana de açúcar. Até hoje
não conseguimos nos libertar deste passado de atraso e de preconceito, que
retardou a criação de um proletariado e uma economia de mercado, quando o
capitalismo se alastrava pelo mundo e os mais idealistas sonhavam com o
socialismo.
Cruzadas são também as historias de famílias das duas regiões, com amas negras
que cuidavam de crianças brancas, em sociedades profundamente preconceituosas.
Esta contradição é o âmago do romance de Kathryn Stockett “The help” que
inspirou o filme homônimo apelidado aqui de “Histórias cruzadas”. Gosto mais do
título brasileiro. A Academia de Hollywood acaba de premiar a atriz Octavia
Spencer por seu desempenho como uma dessas amas nesse filme.
O romance se passa em Jackson, Mississipi, nos anos 60 em plena campanha dos
Civil Rights. Uma dessas crianças brancas, recém formada em jornalismo, resolve
investigar o que se passava com essas damas negras reprimidas e fardadas de
cinza com o diadema branco da subserviência na cabeça. Inclusive a sua,
despedida inexplicavelmente pelos pais e condenada à miséria e à morte. Descobre
que o racismo era mascarado por um higienismo segundo o qual os negros
transmitiam doenças que os brancos não possuíam. Mesmo depois da abolição das
escolas e ônibus separados os sanitários das empregadas continuavam no fundo da
casa.
O diretor do filme, Tate Taylor, contrasta o atraso das praticas sociais com a
modernidade dos carros das famílias brancas. Um dos pontos altos do filme é o
desfile de imensos carros de design zoomórfico como o Cadillac rabo-de-peixe
conversível, que mais parecia uma sereia desfilando pelas ruas ou o Chevrolet
Impala com asas traseiras de fazer inveja a Batman ou ainda os primeiros carros
com faróis olho de gato e pálpebras móveis.
A abolição da escravatura se deu no Brasil 25 anos depois dos EE. UU., mas os
Direitos Civis estão atrasados pelo menos meio século. Ainda há quem acredite
que as cotas são uma invenção dos comunistas. Os sanitários e elevadores
segregados, que só existem no Brasil, estão normatizados nos nossos códigos de
obras. Conheci na Pituba um pequeno edifício que só possuía um elevador, mas
este foi dividido no meio por um tabique, com acessos e comandos separados.
Mesmo assim os patrões quase-brancos reclamavam dos empregados, quase-negros,
que marcavam todos os andares só para pirraçar. Mas eles faziam o mesmo.
Aqui a segregação atende pelo nome de “serviço”. Um apartamento com “serviço
completo” deve possuir tanque de lavagem ou despejo, “quarto de criada”, W.C. e
acessos diferenciados. Nesses códigos os quartos de criadas obedecem ao
principio do “mínimo habitável sem fazer força”, ou seja, 4 m². Como as
empregadas de “tempo integral e dedicação exclusiva” estão se tornando raras, as
imobiliárias passaram a apelidar estes cubículos, agora ligados ao corredor, de
quartos reversíveis, para servir a outra máquina que não pode parar, o
computador.
Mas os sanitários continuam separados, inclusive nos apartamentos mínimos, tipo
sala-e-copulatório, como dizia Flávio de Carvalho. Conheci alguns, em
apartamentos grandes e de luxo, que mal chegavam a ter 1m² e a empregada tinha
que tomar banho sentada. No Mississipi na década de 60 a situação já era melhor.
No filme uma patroa diz que os sanitários podiam ser iguais, mas separados. Quem
ousaria dizer o mesmo aqui, hoje?
A integração racial nos EE. UU. custou a vida de dois presidentes: Lincoln y
Kennedy. Aqui ela ainda não ocorreu. Mas a industrialização começa a libertar as
empregadas. Não obstante esta situação, as imobiliárias continuam a lançar
apartamentos com quatro suítes, mais lavabo e WC. Pobres donas de casa que terão
de trabalhar para ajudar aos maridos, cuidar das crianças, cozinhar, lavar roupa
e ainda esfregar tantos sanitários, inclusive o WC ! Quando as donas de casa
serão libertadas?
SSA: A Tarde, 11/03/12