Artigos de Jornal
E se chover?
Não sou do tempo do acendedor de lampiões de gás, mas ainda alcancei os
guardas sanitários que armavam ratoeiras nas casas para combater pragas e os
garis com carrinho de mão e escumadeira em punho limpando as bocas-de-lobo. Tudo
isso desapareceu com o desmonte do estado e a privatização da cidade. Hoje, a
água e os ratos correm soltos pelo leito das ruas, acabando com a pavimentação e
alagando os vales.
As bocas-de-lobo estão entupidas ou foram concretadas por seus vizinhos, já que
suas redes viraram, em grande parte, coletores de esgoto. Somado a isso, temos a
crescente impermeabilização do solo, com garagens de edifícios ocupando 100% do
lote. O resultado são os frequentes alagamentos da cidade e a buraqueira sazonal
que criou o lucrativo negócio de recapeamento das vias à custa de trocarmos
áreas verdes pela ganga petrolífera da Petrobrás. Em muitos pontos, o
recapeamento ultrapassa o passeio.
Um deficiente sistema de recolhimento de lixo e obras públicas sem nenhuma
tecnicidade pioram dramaticamente a situação de drenagem da nossa cidade. Um
exemplo paradigmático é a estrada de rodagem com escape a apenas cada 4 km,
apelidada de Avenida Paralela, que represou os rios que corriam para a Orla do
Atlântico, formando pequenas lagoas hoje contaminadas por conjuntos
habitacionais em sua volta.
É incrível que isso ocorra em uma cidade muito fácil de ser drenada. Não somos
uma cidade plana e cortada por grandes rios, com imensas bacias de captação a
montante, como Manaus, São Paulo e Recife. Possuímos desníveis de 60 metros que
permitiriam captar a água no alto e desviá-la por gravidade facilmente para uma
das suas três frentes marítimas.
Há três semanas, Salvador voltou a ser alagada provocando um caos no tráfego. Os
remendos acabam sendo piores que o soneto como a inversão de fluxo de vários
rios urbanos. Vistosas placas dos governos federal, estadual e municipal na
Avenida Vasco da Gama anunciam as obras de macrodrenagem do Rio Lucaia. Na
verdade, aquela é uma obra para implantação de um BRT que irá cruzar em viaduto
o que restou do Dique do Tororó para chegar à Estação da Lapa. Mas isso implica,
também, na morte e sepultamento de mais um rio urbano, pois não há como o sol e
o oxigênio entrarem na galeria subterrânea que está por debaixo do BRT.
Como praticamente não existe rede de esgoto nas encostas da Vasco da Gama e as
redes de aguas pluviais que correm para essa galeria estão contaminadas de
esgotos, óleo e graxa das oficinas, postos de gasolina e lixo daquela avenida,
toda essa porcaria vai parar no Rio Vermelho, onde estão uma colônia de
pescadores, os mais luxuosos hotéis da cidade e a praia da Mariquita, que é
utilizada pelos moradores locais. Quanto custa isso à economia urbana de
Salvador? O correto seria separar e completar a rede de esgoto da de águas
pluviais antes de ligá-la ao Rio Lucaia saneado.
Obras semelhantes feitas nas avenidas Antônio Carlos Magalhães (ACM), Centenário
e Imbuí não evitaram os alagamentos da cidade e o travamento do tráfego. O que
poderá ocorrer durante a Copa das Confederações e a Copa do Mundo se chover,
considerando que elas ocorrerão em períodos que coincidem com a estação chuvosa?
Não iremos ter metrô, e nem este e o BRT estão a salvo dos alagamentos. Declarar
feriado só não basta. São Pedro não tira férias. Qual será o legado dessa festa
para a cidade que nós pagamos mas a Federação Internacional de Futebol (FIFA)
fica com o lucro?
A Copa seria um grande pretexto para replanejarmos nossas cidades, mas não como
está sendo preparada. Não é possível que um país que sedia a Rio+20 e tem a mais
limpa matriz de produção energética do mundo possa destruir doze estádios para
refazê-los nos mesmos locais e com a mesma tecnologia ultrapassada, atendendo a
um capricho da FIFA. Precisamos repensar as cidades em função da sua população.
Nossas cidades estão parando por falta de transporte de massa e pelo pavor dos
que não comem, nem consomem, mas se drogam e matam. A ordem, hoje, não é mais
aumentar a produção e o descarte sem limite, é representada por quatro Rs:
redistribuir, reduzir o consumo, reutilizar e reciclar.
Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde, Salvador-BA, 17 de junho de
2012