Artigos de Jornal


E se chover?

  • 17 de Junho de 2012

Não sou do tempo do acendedor de lampiões de gás, mas ainda alcancei os guardas sanitários que armavam ratoeiras nas casas para combater pragas e os garis com carrinho de mão e escumadeira em punho limpando as bocas-de-lobo. Tudo isso desapareceu com o desmonte do estado e a privatização da cidade. Hoje, a água e os ratos correm soltos pelo leito das ruas, acabando com a pavimentação e alagando os vales.
As bocas-de-lobo estão entupidas ou foram concretadas por seus vizinhos, já que suas redes viraram, em grande parte, coletores de esgoto. Somado a isso, temos a crescente impermeabilização do solo, com garagens de edifícios ocupando 100% do lote. O resultado são os frequentes alagamentos da cidade e a buraqueira sazonal que criou o lucrativo negócio de recapeamento das vias à custa de trocarmos áreas verdes pela ganga petrolífera da Petrobrás. Em muitos pontos, o recapeamento ultrapassa o passeio.
Um deficiente sistema de recolhimento de lixo e obras públicas sem nenhuma tecnicidade pioram dramaticamente a situação de drenagem da nossa cidade. Um exemplo paradigmático é a estrada de rodagem com escape a apenas cada 4 km, apelidada de Avenida Paralela, que represou os rios que corriam para a Orla do Atlântico, formando pequenas lagoas hoje contaminadas por conjuntos habitacionais em sua volta.
É incrível que isso ocorra em uma cidade muito fácil de ser drenada. Não somos uma cidade plana e cortada por grandes rios, com imensas bacias de captação a montante, como Manaus, São Paulo e Recife. Possuímos desníveis de 60 metros que permitiriam captar a água no alto e desviá-la por gravidade facilmente para uma das suas três frentes marítimas.
Há três semanas, Salvador voltou a ser alagada provocando um caos no tráfego. Os remendos acabam sendo piores que o soneto como a inversão de fluxo de vários rios urbanos. Vistosas placas dos governos federal, estadual e municipal na Avenida Vasco da Gama anunciam as obras de macrodrenagem do Rio Lucaia. Na verdade, aquela é uma obra para implantação de um BRT que irá cruzar em viaduto o que restou do Dique do Tororó para chegar à Estação da Lapa. Mas isso implica, também, na morte e sepultamento de mais um rio urbano, pois não há como o sol e o oxigênio entrarem na galeria subterrânea que está por debaixo do BRT.
Como praticamente não existe rede de esgoto nas encostas da Vasco da Gama e as redes de aguas pluviais que correm para essa galeria estão contaminadas de esgotos, óleo e graxa das oficinas, postos de gasolina e lixo daquela avenida, toda essa porcaria vai parar no Rio Vermelho, onde estão uma colônia de pescadores, os mais luxuosos hotéis da cidade e a praia da Mariquita, que é utilizada pelos moradores locais. Quanto custa isso à economia urbana de Salvador? O correto seria separar e completar a rede de esgoto da de águas pluviais antes de ligá-la ao Rio Lucaia saneado.
Obras semelhantes feitas nas avenidas Antônio Carlos Magalhães (ACM), Centenário e Imbuí não evitaram os alagamentos da cidade e o travamento do tráfego. O que poderá ocorrer durante a Copa das Confederações e a Copa do Mundo se chover, considerando que elas ocorrerão em períodos que coincidem com a estação chuvosa? Não iremos ter metrô, e nem este e o BRT estão a salvo dos alagamentos. Declarar feriado só não basta. São Pedro não tira férias. Qual será o legado dessa festa para a cidade que nós pagamos mas a Federação Internacional de Futebol (FIFA) fica com o lucro?
A Copa seria um grande pretexto para replanejarmos nossas cidades, mas não como está sendo preparada. Não é possível que um país que sedia a Rio+20 e tem a mais limpa matriz de produção energética do mundo possa destruir doze estádios para refazê-los nos mesmos locais e com a mesma tecnologia ultrapassada, atendendo a um capricho da FIFA. Precisamos repensar as cidades em função da sua população.
Nossas cidades estão parando por falta de transporte de massa e pelo pavor dos que não comem, nem consomem, mas se drogam e matam. A ordem, hoje, não é mais aumentar a produção e o descarte sem limite, é representada por quatro Rs: redistribuir, reduzir o consumo, reutilizar e reciclar.

Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde, Salvador-BA, 17 de junho de 2012


Últimos Artigos