Artigos de Jornal
A cidade como cultura
A cidade não é apenas o palco das diversas linguagens artísticas: a
arquitetura, a música, o teatro, o cinema e as artes plásticas. Ela própria é
cultura material e imaterial. Material, pelo traçado de suas ruas, praças,
fontes e parques, pelo tratamento de suas frentes marítimas e espelhos d’água.
Imaterial, por suas relações sociais, tradições cívicas e religiosas, por suas
festas e jogos. A cidade é um arquivo histórico, como diz o espanhol Checa
Goitia, porque nela se guardam construções de todas as épocas. A história das
artes se confunde com a história da cidade, segundo o crítico de arte e
ex-prefeito de Roma, Cario Argan.
Salvador tem uma cultura urbana riquíssima, pela sua implantação em acrópole,
pelo seu acervo arquitetônico e artístico, pela sua história social, pelo seu
sincretismo religioso, pela alegria de seu povo, por suas festas ao ar livre,
por sua música e cozinha típicas e pelo requebrado de suas baianas. Mas a partir
do início da década de 1970, este patrimônio cultural e econômico vem sendo
impiedosamente pilhado e destruído pela especulação, travestida de progresso,
pela incompetência e conivência de nossos gestores urbanos e pela pusilanimidade
de todos nós, soteropolitenos, que não soubemos reagir a tempo.
Finalmente, quando quase tocávamos o fundo do poço, a Academia de Letras da
Bahia, com o apoio de artistas e produtores culturais soteropolitanos, resolve
reagir cobrando dos candidatos a prefeito um compromisso com a nossa cultura, o
dar um basta na destruição de nosso patrimônio cultural e ambiental urbano e
incentivar a criação cultural, como ocorreu nos anos 60, quando fomos a
vanguarda da arte brasileira.
É preciso que o nosso futuro prefeito compreenda que a par de sua importância
iden- titária, a cultura representa 7% do nosso PIB. No contexto urbano este
percentual é muito maior e para que ele cresça é preciso que a prefeitura tenha
políticas e invista na cultura. Em meado da década de 70, Nova York enfrentou
uma crise financeira e de gestão semelhante à de Salvador. A campanha do novo
prefeito para recuperar a cidade foi recriar a autoestima de seus cidadãos com o
slogan “I Love New York”.
Enquanto a Prefeitura do Recife aplica 4% do seu orçamento em cultura e
transformou o Centro Histórico em um polo de informática, a nossa não chega a
investir 0,5% e não tem nenhuma política para o Pelourinho. Não obstante os
esforços dos últimos presidentes da Fundação Gregório de Mattos, não é possível
fazer milagres com tal orçamento. Este grupo de intelectuais não quer congelar a
cidade, mas é preciso acabar com a farsa de que basta preservar o Centro
Histórico para os turistas “e que tudo mais vá para o inferno”. Se fosse assim,
não teríamos mais Paris, Barcelona, Florença, San Francisco e as cidades
mineiras. É preciso compreender que a recuperação do Pelourinho não pode ser uma
operação puramente arquitetônica, senão essencialmente urbanística e isto é uma
competência exclusiva do município.
O que a prefeitura fez pelo Pelourinho nos últimos vinte anos? Um dos maiores
flagelos dele é a falta de mobilidade e acessibilidade. No entanto, o Plano
Inclinado Gonçalves está parado há quase um ano e o Elevador Lacerda funcionando
precariamente. Precisamos ter um órgão cultural com status de secretaria, um
conselho cultural nos moldes do recomendado pelo Estatuto da Cidade e incentivos
fiscais para a cultura. Sem isso, a prefeitura não pode exercer as atribuições
constitucionais de preservar e incentivar a cultura.
O encontro sugerido e coordenado pelo acadêmico Luís Antonio Cajazeira está
marcado para o próximo dia 26, à noite, na Academia de Letras da Bahia. Não será
um debate, nem um embate para constranger os candidatos, senão ouvi-los sobre o
que pensam sobre a cidade. O confronto será subjetivo, na cabeça de cada
ouvinte-cidadão. No final da sessão, será entregue a todos um documento do grupo
de trabalho com sugestões. A recuperação de Salvador passa inevitavelmente pelo
resgate da autoestima dos soteropolitanos e isto não se consegue sem reforçar a
cultura urbana.
SSA: A Tarde, 15/07/2012.