Artigos de Jornal
Fazendo arqueologia em Salvador
No auge da repressão, no final dos anos 60, me exilei voluntariamente na
Itália e em Portugal aproveitando para fazer um doutorado. Nessa oportunidade
conheci toda a Europa. Já era um arquiteto e cada nova cidade era uma descoberta
e uma aula. Em Roma, Praga ou Paris aprendi que nenhuma cidade pode existir sem
um rio, um lago, um mar e arquiteturas de todos os tempos. Em Veneza e Amsterdam,
vagabundeando por suas ruelas, pensei comigo: esta é a condição que toda cidade
deve almejar: estar livre de carros, possuir um céu azul e poder se refletir nas
aguas tranquilas dos canais. Não alcançarei, mas algum dia todo tráfego urbano
será subterrâneo e as ruas devolvidas aos cidadãos.
Voltei algumas vezes à Europa e em cada oportunidade aproveito para rever um
beco, uma praça uma ponte ou uma fonte. Está tudo em seu lugar, ainda bem ! Mas
há sempre um novo museu, uma sala de concerto ou uma estação de metrô da melhor
arquitetura que espelha a antiga. Há um mês voltei à Itália para participar de
um seminário na Sardenha. Revi Milão, Turim, Roma e conheci Cagliari e algumas
vilas da ilha. O país está em crise econômica e politica, mas suas cidades têm
uma vida urbana impressionante e serviços públicos que funcionam. São milhares
de pessoas curtindo suas praças, suas ruas e pontes. Não apenas turistas, mas
casais jovens e velhos conversando em bancos públicos ou em torno de uma mesa
debaixo de um toldo para comer e beber civilizadamente pastas, queijos e vinhos
maravilhosos, como a nossa cozinha-afro e aperitivos. Os fast foods servem
apenas a turistas apressados, que não curtem nada, apenas fotografam.
Revejo a Salvador do final dos anos 60, quando fui a primeira vez à Europa. A
cidade ainda estava integra e o Inspetor Geral dos Monumentos Franceses, Michel
Parent, em relatório para a UNESCO afirmava que Salvador era uma cidade-de-arte
como Toledo e que havia um potencial turístico imenso nas cidades do Nordeste.
Passados meio século, Salvador é uma cidade irreconhecível. Não me refiro só ao
chamado centro histórico esvaziado de seus valores humanos, sociais e
imateriais, mas a toda a cidade, sem céu nem mar, obstruídos por
torres-pardieiros paulistanos, “o avesso do avesso”, com seus traseiros
embandeirados de panos de bunda.
A “modernidade especulativa” destruiu o nosso diferencial turístico
transformando em ruina toda a Cidade Baixa, Saúde e Palma. Os nossos bairros
tradicionais foram destruídos pela introdução indiscriminada de serviços e
espigões. O Corredor da Vitória, de onde se via por entre viletas e jardins a
baia e Itaparica, foi emparedado por espigões de ocasião. Graça, Canela e Barris
com seus chalés e bangalôs já não existem como bairros. Os aprazíveis balneários
de Itapagipe, Rio Vermelho, Amaralina e Itapuã não têm vida social. Também
bairros populares, como a Liberdade, Pau Miúdo, Corta Braço e o Subúrbio
Ferroviário, de intensa vida social, foram sucateados.
Onde está o paisagismo elegante do Passeio Público, da Piedade e do Jardim da
Graça e os balaústres, mosaicos e obeliscos dos miramares do Largo do Teatro, da
Barra, do Farol e do Rio Vermelho, arquitetados pelo napolitano Felinto Santoro?
Foi tudo destruído pela incúria de nossos prefeitos para dar lugar a
formigueiros verticais e ao carro privado. Pouquíssimo restou da arquitetura do
Segundo Império, da eclética de Rossi Baptista e Felinto Santoro e da
modernista, de Diógenes Rebouças e Assis Reis. Do casario colonial só resta o
cenário vazio do Pelourinho.
Caminho hoje por uma Salvador irreconhecível, transformada em uma floresta de
concreto, sempre atento para não ser assaltado, narrando a arqueologia da cidade
para os meus filhos e netos: aqui era o bairro dos mercadores, ali dos
ferroviários, aqui existiu um rio, uma lagoa, um porto de saveiros, um jardim,
um chafariz, uma fábrica de tecidos. Salvador me faz lembrar a Nova York do
filme Planeta dos Macacos, cuja única coisa reconhecível era a estátua derrubada
da Liberdade. Em Salvador, depois da invasão dos gorilas predadores, restará
apenas o Elevador Lacerda arruinado, mas transformado em museu arqueológico. Não
sou um saudosista, senão um futurólogo angustiado.
SSA; A Tarde, 11/11/12