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Fazendo arqueologia em Salvador

  • 11 de Novembro de 2012

No auge da repressão, no final dos anos 60, me exilei voluntariamente na Itália e em Portugal aproveitando para fazer um doutorado. Nessa oportunidade conheci toda a Europa. Já era um arquiteto e cada nova cidade era uma descoberta e uma aula. Em Roma, Praga ou Paris aprendi que nenhuma cidade pode existir sem um rio, um lago, um mar e arquiteturas de todos os tempos. Em Veneza e Amsterdam, vagabundeando por suas ruelas, pensei comigo: esta é a condição que toda cidade deve almejar: estar livre de carros, possuir um céu azul e poder se refletir nas aguas tranquilas dos canais. Não alcançarei, mas algum dia todo tráfego urbano será subterrâneo e as ruas devolvidas aos cidadãos.

Voltei algumas vezes à Europa e em cada oportunidade aproveito para rever um beco, uma praça uma ponte ou uma fonte. Está tudo em seu lugar, ainda bem ! Mas há sempre um novo museu, uma sala de concerto ou uma estação de metrô da melhor arquitetura que espelha a antiga. Há um mês voltei à Itália para participar de um seminário na Sardenha. Revi Milão, Turim, Roma e conheci Cagliari e algumas vilas da ilha. O país está em crise econômica e politica, mas suas cidades têm uma vida urbana impressionante e serviços públicos que funcionam. São milhares de pessoas curtindo suas praças, suas ruas e pontes. Não apenas turistas, mas casais jovens e velhos conversando em bancos públicos ou em torno de uma mesa debaixo de um toldo para comer e beber civilizadamente pastas, queijos e vinhos maravilhosos, como a nossa cozinha-afro e aperitivos. Os fast foods servem apenas a turistas apressados, que não curtem nada, apenas fotografam.

Revejo a Salvador do final dos anos 60, quando fui a primeira vez à Europa. A cidade ainda estava integra e o Inspetor Geral dos Monumentos Franceses, Michel Parent, em relatório para a UNESCO afirmava que Salvador era uma cidade-de-arte como Toledo e que havia um potencial turístico imenso nas cidades do Nordeste. Passados meio século, Salvador é uma cidade irreconhecível. Não me refiro só ao chamado centro histórico esvaziado de seus valores humanos, sociais e imateriais, mas a toda a cidade, sem céu nem mar, obstruídos por torres-pardieiros paulistanos, “o avesso do avesso”, com seus traseiros embandeirados de panos de bunda.

A “modernidade especulativa” destruiu o nosso diferencial turístico transformando em ruina toda a Cidade Baixa, Saúde e Palma. Os nossos bairros tradicionais foram destruídos pela introdução indiscriminada de serviços e espigões. O Corredor da Vitória, de onde se via por entre viletas e jardins a baia e Itaparica, foi emparedado por espigões de ocasião. Graça, Canela e Barris com seus chalés e bangalôs já não existem como bairros. Os aprazíveis balneários de Itapagipe, Rio Vermelho, Amaralina e Itapuã não têm vida social. Também bairros populares, como a Liberdade, Pau Miúdo, Corta Braço e o Subúrbio Ferroviário, de intensa vida social, foram sucateados.

Onde está o paisagismo elegante do Passeio Público, da Piedade e do Jardim da Graça e os balaústres, mosaicos e obeliscos dos miramares do Largo do Teatro, da Barra, do Farol e do Rio Vermelho, arquitetados pelo napolitano Felinto Santoro? Foi tudo destruído pela incúria de nossos prefeitos para dar lugar a formigueiros verticais e ao carro privado. Pouquíssimo restou da arquitetura do Segundo Império, da eclética de Rossi Baptista e Felinto Santoro e da modernista, de Diógenes Rebouças e Assis Reis. Do casario colonial só resta o cenário vazio do Pelourinho.

Caminho hoje por uma Salvador irreconhecível, transformada em uma floresta de concreto, sempre atento para não ser assaltado, narrando a arqueologia da cidade para os meus filhos e netos: aqui era o bairro dos mercadores, ali dos ferroviários, aqui existiu um rio, uma lagoa, um porto de saveiros, um jardim, um chafariz, uma fábrica de tecidos. Salvador me faz lembrar a Nova York do filme Planeta dos Macacos, cuja única coisa reconhecível era a estátua derrubada da Liberdade. Em Salvador, depois da invasão dos gorilas predadores, restará apenas o Elevador Lacerda arruinado, mas transformado em museu arqueológico. Não sou um saudosista, senão um futurólogo angustiado.

SSA; A Tarde, 11/11/12


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